Alexandre Takara é descendente de japoneses. Na região do ABC vive há mais de 40 anos. Foi professor de História do Colégio Singular em Santo André, foi diretor de Cultura na SEcretaria Municipal de Cultura Esporte e Lazer de Santo Andr´pe, na década de 2000. Docente na Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Na juventude envolveu-se com movimentos artísticos e culturais na região. Amante do teatro, acompanhou os grupos locais. |
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Depoimento de ALEXANDRE TAKARA, 74 anos.
IMES – Universidade Municipal de São Caetano do Sul, 05 de julho de 2005.
Entrevistadores: Priscila F. Perazzo, Vilma Lemos, Tiago Magnani e Rita de Cássia Donato dos Santos.
Pergunta:
Por favor, comece falando a data e o local de seu nascimento.
Resposta:
Nasci em Promissão, em 4 de julho de 1931, portanto estou com 74 anos bem vividos, garotão, faço esportes radicais, por isso estou com o joelho quebrado. (Risos) Promissão é uma cidade pequena desconhecida, na região Noroeste do Estado de São Paulo, entre Bauru e Araçatuba.
Pergunta:
O senhor morou lá até quantos anos?
Resposta:
Eu morei lá por dez anos. Logo após, em 1940, mais ou menos, a minha família se mudou para a cidade de Marília, onde permanecemos por uns dois anos; logo após Valparaíso; depois de Araçatuba, perto das barrancas do Rio Paraná; e em 1946 nós viemos para São Paulo, onde vivemos quatro anos; em 1950 nós mudamos para a cidade de Santo André.
Pergunta:
Em qual lugar de São Paulo o senhor morava?
Resposta:
Eu morei 15 dias na baixada do Bairro Ipiranga, onde hoje existe aquela rua onde o Pitta construiu aquele elevado. Era um lugar horrível. Só morei em lugares horrorosos. Meus companheiros foram ratos, etc. Tanta pobreza. Depois mudamos para o Bairro da Saúde, onde permanecemos por uns três anos e logo após, em 1950, conforme estava dizendo, que nós mudamos para Santo André. E o primeiro bairro onde moramos foi Camilópolis, um bairro de operários. Eles compravam apenas terrenos e com muita dificuldade construíam casas e eles moravam nelas com vistas a uma redução. Ganhavam pouco, então eles viviam naquela casa sem reboque. Por isso que muitos bairros de Santo André, particularmente Camilópolis e Parque das Nações, quando cheguei aqui, eram conhecidos como bairro sem reboque. Não havia nada de urbanização, as ruas eram mal traçadas, sem calçamento, sem absolutamente nada. Os ônibus, quando nós mudamos para cá, paravam lá no finalzinho da Rua Vieira de Carvalho, no Bairro Santa Terezinha. E nós tínhamos de andar uns dois quilômetros até nossa residência. Nessa altura eu e minha irmã estudávamos no Colégio Américo Brasiliense, em 1951. Mas acho que a gente avançou bastante no tempo. Talvez fosse interessante falar sobre a minha infância. Até o momento falei do itinerário de mudanças. Depois, em 1985 eu me divorciei, mudei para o centro de Santo André e em 1989, adquirido um apartamento, fui morar em São Bernardo do Campo, onde permaneço até a presente data.
Pergunta:
Vamos voltar para a sua lembrança. Como era a sua infância, o que o senhor se lembra? E aproveitando esse período, conte um pouco sobre o que a sua família vivia no pós-guerra, ou durante o período.
Resposta:
Eu nasci em 1931, portanto, no período entre as duas guerras mundiais, a Primeira de 1914 a 1918, uma guerra concentrada mais na Europa, e a Segunda Guerra Mundial de 1939 a 1945. A minha família era extremamente pobre, haja vista que a minha mãe perdeu três filhos natimortos, por causa do problema da subalimentação. A minha família era extremamente pobre. E a minha infância tinha tanta pobreza que ainda hoje existe uma remanescência dessa infância pobre. Eu não enxergo bem e esse problema de cegueira praticamente absoluta no olho esquerdo é produto dessa pobreza. Há de considerar também que fui vítima da queda da Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929. Nasci em 1931. Quando eu nasci, havia apenas dois anos que tinha acontecido essa grande crise. E meus pais, nesse momento, 1929, 1930, tinham um pequeno sítio em Promissão, e foi naquela época também que o Presidente Getúlio Vargas acabou decretando a queima de café. Meus pais eram obrigados a carregar a carroça de café colhido por eles e levar até a Praça Primeiro de Maio, em Promissão, onde eles recebiam do funcionário do Instituto Brasileiro do Café, IBC, querosene com fogo e eles mesmos ateavam fogo no produto do trabalho deles. E eu era criança de 2 anos e minha mãe me contava. Ela me carregava nas costas ou eu ia na boléia da carroça até a cidade de Promissão. Foi uma situação terrível. E meu pai comprou o sítio sob hipoteca e a primeira colheita de café, ele a fez alguns anos depois, justamente no ano da decretação da queima. E meu pai não tinha dinheiro para pagar aquela dívida e a hipoteca tirou a propriedade dele. Aí entramos na mais negra miséria. Eu me recordo que meus pais não tinham dinheiro para comprar alimentos. A minha mãe, para dar aquele gosto de alimento, cozinhava o peixe seco, colocava na água fervida e nós bebíamos aquilo como se fosse uma sopa, como se fosse alimento. Eu me recordo também dessa época que um dia meu pai me pediu, eu era garoto de 4 anos, para eu fazer uma compra fiado no armazém de um amigo dele que também era japonês. E esse senhor, o vendeiro, me disse: Avise seu pai que eu não posso vender alimentos porque a dívida dele é muito grande. E eu contei esse fato para meu pai e para minha mãe e claro que eles caíram num verdadeiro drama, porque eles perceberam que estavam sem condições de sustentarem os próprios filhos. Na época nós éramos sete, seis moças e eu o único homem. Eu me recordo também que nesse período eu levantava de madrugada para furtar pão que o padeiro colocava, ou na soleira da porta ou na janela, e na calada da madrugada eu pegava pão para me alimentar. Naquele tempo eu já era um pouco estrategista. Eu roubava o pão numa madrugada e na madrugada seguinte ia roubar em outro bairro. Eu nunca fui pego em flagrante e dessa maneira acabei sobrevivendo. E outra coisa. Lá em casa, em todas as famílias japonesas... Não esquecer que a imigração japonesa veio para cá em 1908, portanto daqui a três anos os japoneses comemorarão o primeiro centenário da imigração japonesa. Eu mesmo faço parte de uma comissão para a realização das festas da colônia. Eu me recordo nessa época que as famílias japonesas não sabiam falar português, e nós falávamos japonês em casa. E eu fui matriculado numa escola, mas como eu podia aprender se eu não tinha o domínio da língua portuguesa, haja vista que eu fui reprovado três anos consecutivos no primeiro ano do grupo escolar?! Eu tinha ódio da escola, porque eu era reprovado, todos meus colegas eram bem menores do que eu, eu aquele quase meio adolescente. Eu era alvo de gozação dos meus amigos, as professoras me consideravam burro. Aos meus pais então, que Deus os tenha no céu, eu devo ter causado uma tristeza tamanha. Vir do Japão, uma terra tão distante, para ter uma porcaria de filho como esse, incompetente, que não aprende nada? Eu tinha ódio da escola. Eu saía da minha casa para ir para a escola, mas no meio do caminho eu acabava desviando e ia até a estação ferroviária de Promissão, onde eu pegava a rabeira do trem, caminhava alguns quilômetros no sentido de Penápolis e lá, em uma das subidas, eu pulava do trem para tomar banho no Rio dos Patos, onde eu ficava durante umas quatro horas, até chegar outro trem que me levava de volta a Promissão. E o retorno do trem coincidia com o término das aulas. Eu voltava tranqüilão para casa. Eu fiquei uns 15, 20 dias consecutivos sem ir à escola, até que um certo dia meu pai estava me aguardando na porta da casa e me perguntou onde eu tinha ido. Falei que fui à escola. Foi nada, você é mentiroso. É que tinha ido um inspetor da escola perguntando ao meu pai se eu tinha melhorado de saúde. Ele falou que eu estava bem, que eu saía todos os dias. Foi chapuletada voadora de tudo quanto é lado. Ele pegou o cabo de vassoura e me bateu na bunda, nas costas, grandes vergalhões nas costas. Além de eu não dominar a língua portuguesa, mas não obstante a pobreza, os meus pais fizeram questão de que eu estudasse. Também fiz o Ginásio no Colégio Americano de Lins em cujo internato eu vivia. Se eles eram pobres, como eles pagavam? Meu pai pagava com os produtos do labor, da terra, com arroz, feijão, milho, mandioca. O internato tinha uns 200 alunos, então precisava de alimentos. Mesmo no ginásio eu estava preste a ser reprovado e precisava ter aulas particulares de português, mas o meu pai não tinha como pagar. Foi quando o Professor Moacir Rodrigues, de saudosa memória, professor de língua portuguesa, acabou me oferecendo 12 aulas gratuitas de português. Foi só na calada da noite que eu aprendi o núcleo fundamental da língua portuguesa e por conta própria acabei me desenvolvendo e tendo domínio da língua portuguesa. Na minha adolescência eu falava muito melhor do que falo hoje, embora hoje eu seja professor universitário. E o Professor Moacir Rodrigues era uma pessoa humaníssima. Ele sabia que num dado momento, devido às condições precaríssimas da família, eu abandonaria os estudos. Então ele convidou-me a trabalhar na chácara do internato, plantando verduras, criando gado, cabritos, etc., e foi com esse trabalho pessoal na chácara que consegui dar sustento aos meus estudos. Eu faço questão absoluta de enfocar a pessoa do Professor Moacir Rodrigues, porque a ele eu devo a minha formação intelectual e também profissional e pessoal. Dele me recordo sempre. Acho que todos nós tivemos, um dia, um Moacir Rodrigues na vida.
Pergunta:
O internato era um prêmio ou uma consolação? Era um privilégio ou uma punição?
Resposta:
Naquela época a rede de ensino do Estado e particular era muito pequena. A despeito de, naquela época, ser o Estado mais desenvolvido. Imaginem lá pelo interior. Não havia. Meus companheiros de internato eram os jovens da minha idade, que moravam nos municípios próximos da cidade e também de Mato Grosso, Aquidauana e Corumbá, a região que hoje conhecemos como Pantanal, e tinha como colega alunos que vinham de Goiás. Naquelas imediações, naqueles locais, também não havia escolas. Então esse internato acabou desempenhando um papel, um histórico bastante importante no sentido de abrigar jovens estudantes do interior de São Paulo e de outros Estados. Não havia essa coisa de penalidade ou coisa que o valha. Era um internato que recebia estudantes de outros estados, como havia no Colégio Americano, de orientação metodista, onde estudei, como havia no Colégio Diocesano, e havia o Colégio das Salesianas, onde ficavam as moças. Éramos internos. Agora voltando um pouco. Eu me recordo que em 1946 nós mudamos de Valparaíso para São Paulo, onde ficamos três anos e pouco. Acho que é uma passagem que poucas pessoas viveram. Eu cheguei aqui na primeira quinzena de dezembro de 1946. No primeiro contato que tive com a Estação da Luz é de ela incendiada, porque não sei se vocês sabem, a São Paulo Railway, como era chamada, uma concessão para os ingleses e naquela época tinha terminado a concessão e havia, não sei se obra de espionagem ou não sei o quê, houve um incêndio na Estação da Luz e quando eu cheguei a essa estação, ainda verificava que havia os traços do incêndio. Colunas de ferro no chão, algumas paredes ainda fumegando, as estradas interditadas ainda e assim sucessivamente. Não sei se algum depoente tenha feito esse tipo de observação. Eu cheguei alguns dias após o incêndio da Estação da Luz. Acho que valeria a pena vocês, que são memorialistas, enfocar junto a outros depoimentos alguns aspectos desse incêndio. Eu vim para cá em 1946 e nessa altura os japoneses tinham uma formação extremamente militar. Eles se consideravam os povos vencedores militarmente, haja vista que se fizer uma retrospectiva histórica do Japão, a considerar que o Japão venceu a Rússia no ano de 1905. A vitória sobre a Rússia czarista foi motivo de orgulho, porque a Rússia era também ocidente. Foi um fato importante. E a partir desse momento, também houve o fenômeno da militarização cada vez maior. O Japão, a considerar que é um arquipélago, um conjunto de ilhas, cercado pelo Mar do Japão e outros mares, e com um território não agriculturável cuja população crescia bastante, porque se vocês analisarem bem, somente 20, no máximo 30% do território japonês é agriculturável. Daí o porquê de o Japão apelar à industrialização com vistas a atender aqueles países próximos, Coréia, China, Tailândia, e aqueles países do Pacífico. Mas como essa parte do mundo, da Ásia, era dominada pelos americanos, comercialmente falando, começou a haver uma rota de colisão entre os Estados Unidos e o Japão, que culminou na Segunda Guerra Mundial. Gostaria de dizer que nesse embate comercial, os japoneses tiveram que se militarizar. E eles vão ter a guerra contra a China, invadem a Mongólia. Um tio meu era professor na época, e, a serviço da dominação japonesa lá na Mongólia, foi ser professor. Vejam vocês, o Japão vinha de sucessos comerciais e militares, daí o militarismo e também o nacionalismo. Não dá para entender o militarismo sem o imperialismo e sem o nacionalismo.
Pergunta:
E a sua família?
Resposta:
Dentro desse contexto, os japoneses vieram para cá a partir de 1908, insuflados pelo sentimento nacionalista, militarista e imperialista. Eles eram os maiores. Eu me recordo, quando era pequeno, se alguém perguntasse o que queria ser quando crescesse, todo japonês falava: Soldado japonês. Eu respondia imitando que queria ser soldado japonês, mas sem convicção. Assim me criei, nesse contexto histórico. Claro que muitos japoneses, terminada a Segunda Guerra Mundial, não queriam convencer-se da derrota militar japonesa, daí esse fenômeno do fanatismo chamado Xindo Re Nei. O grupo acabou assassinando muitos daqueles japoneses que eram tidos como os traidores da pátria japonesa.
Pergunta:
Você chegou em São Paulo, em 1946, justamente no período da Xindo Re Nei, mas lá no interior. Você chegou a conhecer alguma pessoa que tenha sido assassinada desse modo?
Resposta:
Eu sei que meu cunhado foi preso. Eu sei de notícias em Tupã, em Marília, que alguns japoneses tinham sido assassinado, mas sobretudo aqui em São Paulo, no Bairro da Liberdade. Era um fuzuê naquele tempo quando se sabia da morte de alguém.
Pergunta:
As outras pessoas, a população de um modo geral, elas olhavam feio para os japoneses, em função da guerra? As que não eram da comunidade japonesa, como tratavam os japoneses?
Resposta:
Explodiu a Segunda Guerra Mundial, em 1939, e em 1943, o Brasil e o Japão declararam-se em guerra. E a colônia japonesa radicada no Brasil foi considerada inimiga do Brasil, daí a perseguição.
Pergunta:
A sua família, seus amigos, o senhor se lembra de alguém que sofria isso?
Resposta:
Dos adultos, diversas pessoas, não me lembro os nomes deles.
Pergunta:
Seus pais reclamavam disso, de terem sofrido algum tipo de perseguição?
Resposta:
Reclamavam, haja vista que foi proibida a língua japonesa no Brasil, foi proibida a impressão de jornal japonês. Inclusive os nomes dos estabelecimentos comerciais, escritos em japonês, tiveram de ser eliminados. O rádio também foi eliminado. Nós ficamos num isolamento terrível; e claro que a colônia japonesa, meu pai mesmo, reclamou muito desse isolamento.
Pergunta:
E o senhor jovenzinho, nesse período?
Resposta:
Nesse período eu também sofri bastante porque eu devia ter uns 11 anos e eu freqüentava o Primeiro Grupo Escolar de Lins. Para todos os efeitos, nós, nisseis, éramos considerados inimigos do Brasil, então nós éramos..., as nossas casas eram apedrejadas. Quando os garotos nisseis iam para a escola, nós tínhamos de ir em grupo, como uma forma de autodefesa. E o nosso diretor nos soltava com 5 ou 10 minutos de antecedência com a recomendação de que nós fôssemos direto para casa. Nesse momento nós não tínhamos sequer o direito ao lazer, aos folguedos da rua, porque vinham com pedradas, com pauladas. Por quantas vezes aconteceu isso, inclusive comigo. E como eu era forte, corpulento, eu batia e apanhava. Mais apanhava do que batia. E assim foi. Nós, por causa desse isolamento, dessas perseguições, fomos privados de ir ao cinema também. Imaginem vocês naquele tempo, passando aqueles seriados incríveis e maravilhosos do Príncipe Submarino, do Flash Gordon, etc., e nós não podermos assistir. Foi um tormento terrível.
Pergunta:
Vamos para a região de Santo André agora. Fale um pouco sobre o lazer e os movimentos artísticos dos quais o senhor participou.
Resposta:
Conforme eu disse para vocês, minha família mudou para Santo André em 1954 naquele bairro sem reboque, que era Camilópolis. Santo André era uma cidade eminentemente operária. Quando para cá eu mudei, havia somente uma escola, Duque de Caxias, que funcionava então na Praça do Carmo. E o Américo Brasiliense não tinha sido instalado ainda. Vai ser instalado, mais ou menos, nessa época, uns dois anos depois. Eu falo dessa questão da ausência de estudantes, haja vista que eu morava em Camilópolis e eu e minha irmã, em 1954, éramos os únicos estudantes do Segundo Subdistrito. A atividade cultural era pequena, mas já naquela altura, não obstante ser pobre e ter dificuldade nos estudos no Colégio Americano de Lins, eu já era um excelente leitor. Aos 12 anos de idade eu tinha lido Os Miseráveis, de Victor Hugo.
Pergunta:
Em português?
Resposta:
Sim. Eu tinha melhorado muito. As Memórias do Além Túnel, de Chateaubriant. Naquele tempo o romantismo ainda exercia uma influência muito grande, a literatura francesa. Eu me desenvolvi intelectualmente sob a égide da cultura francesa. Era o domínio naquela época, e perdeu para a linguagem dos americanos e ingleses com uma linguajem de comerciantes. Se hoje os americanos têm o domínio do mundo econômico, militar, etc., eles escreveram um capítulo importante da história da humanidade, mas para mim, formado na cultura francesa, os franceses escreveram um capítulo importante da história da eternidade.
Pergunta:
Qual das pressões do período militar, ligados à arte...?
Resposta:
Como eu já era um excelente leitor, sempre me interessou a questão cultural. Tanto é verdade que ainda estudante do Colégio Américo Brasiliense eu mesmo organizava serões literomusicais, dos quais a sua mãe Maria Amélia, Priscila, participava. Eu me recordo que na casa do seu avô eu fui inúmeras vezes porque vocês tinham, se não me engano, um piano. Era a classe média que possuía. Quantas vezes eu fui à casa do se avô para participar de um sarau musical. Essa é a lembrança que tenho da Maria Amélia, sua mãe. Eles moravam na Rua Campos Sales, bem no centro de Santo André. Já nessa altura eu já me formava como animador cultural e daí o porquê de eu sempre estimular ações culturais e artísticas, haja vista que eu cheguei a adotar uma metodologia de Bertold Brecht de levar o teatro a todos os cantos da periferia da cidade de Santo André. Eu estimulei o quê? Montar peças de teatro sobre as carrocerias de caminhão. E nessa altura já havia aqui diversos teatros. Um deles, se não me engano, era a Escola Escasa, que funcionava onde hoje é o Júlio de Mesquita. Alguns anos depois vai ser montado o Teatro de Alumínio, na Rua Alfredo Fláquer. Então, a partir do momento, com a instalação do Teatro de Alumínio, começou a se desenvolver o teatro amador e muitos grupos de teatro de São Paulo vieram para cá. Não me lembro bem qual, Gente Como a Gente, a Nicete Bruno e o Paulo Goulart. Eles vieram aqui. Nesse tempo que foi criada a questão do GTC, que estava começando na década de 50.
Pergunta:
Como foi esse início de criação desse primeiro grupo profissional?
Resposta:
Naquela época em Santo André moravam alguns estudantes da Escola de Arte Dramática, de São Paulo, entre eles tem a Sônia Guedes, o Antonio Petrin e mais duas pessoas que não me lembro agora dos nomes. Eles freqüentavam a EAD e eles acabaram fomentando o teatro amador, daí por que eles acabarem montando depois o Grupo de Teatro da Cidade, sob a influência da Heleni Guariba, que vinha de uma experiência maravilhosa de Paris, França.
Pergunta:
Lyon.
Resposta:
Exatamente. Estuda bem, rapaz. E inspirada nessa experiência francesa, montou-se aqui o GTC, Grupo de Teatro da Cidade. Eles que apresentaram a peça “A Guerra do Cansa Cavalo”, com a qual se inaugurou o Teatro Municipal de Santo André, em 1971.
Pergunta:
O senhor assistiu?
Resposta:
Se assisti? Eu colaborei, ao lado do Acylino, mais ele do que eu, na montagem do Teatro Municipal, porque embora construído havia 2 anos, a burocracia não se movimentava e graças ao Acylino, Zé Armando, o Petrin e a Sônia Guedes, eles deram a finalização do Teatro Municipal que acabou culminando com a apresentação do GTC.
Pergunta:
Qual era a estética do GTC? Era um teatro político?
Resposta:
Claro que eles tinham a idéia de liberdade e pregavam a liberdade mesmo através de diversas peças. O Zebedeu é uma peça importante, de conteúdo político extremamente forte. Enquanto isso, no cenário político brasileiro já se organizava a ditadura militar, que vai culminar com o golpe militar de 1964. É claro que a cultura, como acontece em todos os países, foi uma das vítimas preferidas da ditadura, particularmente o teatro, devido à capacidade de mobilização e de convencimento. Você me perguntou como era a situação do teatro dentro do cenário político da ditadura? Eu me recordo, Vilma, que naqueles tempos os estudantes universitários e os atores de teatro montavam uma peça no Tuca, em São Paulo, ou USP ou outros lugares, e eles eram vítimas de perseguição. Estabeleceu-se entre eles uma paranóia extremamente grande. Estabeleceu-se também um mecanismo de defesa contra a perseguição militar. Como assim? Os estudantes universitários, os grupos de teatro e também os jornalistas começavam um discurso contra a ditadura militar num espaço de São Paulo e eles colocavam olheiros para ver se vinha a polícia da ditadura. Na dúvida eles mudavam para outra faculdade, para outro teatro. E como a ditadura militar sabia desse itinerário de reuniões, eles acabaram vindo para Santo André. E me recordo que nessa época o teatro em funcionamento era o Teatro de Alumínio. Nós tivemos de abrigar no Teatro de Alumínio. Eu participei desse esquema de autodefesa. Eu era professor do cursinho de ciências e letras, incorporado posteriormente pelo Singular. Eu e a minha equipe de alunos tivemos de ficar nos pontos estratégicos de Santo André, na Avenida D. Pedro II, aqui nas imediações do IMES, na Rua Oratório e em diversos outros lugares, na Pereira Barreto. Os meus alunos funcionavam como olheiros e em qualquer movimentação da polícia da ditadura, nós tínhamos por obrigação informar o pessoal reunido no Teatro de Alumínio para eles mudarem de local. E foi dessa maneira. Havia uma paranóia muito grande. E gostaria de acrescentar que nós não nos fixamos apenas no teatro, embora fosse a linguagem mais forte naquela ocasião, mas também no cinema. Só que a nossa produção cinematográfica ainda era pequena. Talvez, não me lembro bem agora, aquele filme que ganhou prêmio, do Lima Duarte, dois filmes tinham ganhado prêmios internacionais, O Cangaceiro e também O Pagador de Promessas, mas o resto era tudo incipiente. O que nós tínhamos de fazer? Buscar filmes no estrangeiro, haja vista que naquela época o diretor mais importante para nós era Costa-Gravas, o diretor de cinema político que fez O Desaparecido, que fez Estado de Sítio. E nós naquela época exibíamos esses filmes, muitos falados em francês, num determinado lugar, casa, escola, clube ou igreja. Começávamos num determinado local, continuávamos em outro local e assim sucessivamente, até o término do filme. Gozado é que o pessoal não percebeu essa nossa técnica. Tanto é verdade que mesmo lendo a literatura daquela época, vocês não têm referência a esses locais diferentes. Eu me lembro também que o Estado de Sítio é um filme com referência ao Brasil, à ditadura militar, com os soldados com uniformes de brasileiros, inclusive com a bandeira brasileira, e falando algumas passagens em português. Imaginem se nós fôssemos pegos. A esta altura estaria no inferno.
Pergunta:
Essa era a única atividade do senhor ou o senhor chegou a trabalhar em outras áreas?
Resposta:
Nessa época, em 1954 eu prestei um concurso. Eram 400 bolsas de estudo fornecidas pelo Sesi e eu fiz esse curso na escola de Sociologia e Política de São Paulo tão logo terminei o segundo grau aqui no Américo Brasiliense. E todos os concorrentes, uns 500, todos eles eram estudantes universitários ou formados, assistentes sociais, advogados. Eu era o único recém saído do Américo Brasiliense. De tanto meu amigo insistir, detalhes estão no meu livro, eu me inscrevi. Inscrevi por inscrever, porque não ia ser aprovado, jamais. E para a minha alegria eu peguei a última vaga, passando 450 estudantes universitários e profissionais liberais. E a partir daí não vi mais esse grupo. Conquistei a minha auto-estima, a minha auto-afirmação, e a partir daí ninguém mais me segurou na vida pessoal e intelectual, me formei e me desenvolvi a partir daí.
Pergunta:
E material impresso, o senhor conhece A Cigarra, ligando mesmo essas coisas de atuação, de censura ou de imprensa alternativa?
Resposta:
Na verdade eu li A Cigarra, li O Cruzeiro. Posteriormente é lançada a Revista Manchete. Antes havia diversas, mas não me lembro muito bem porque eu me fixava mais na leitura de livros do que de revistas. Para esse fim seria mais interessante que vocês entrevistassem o Waldecir Petroglio, que mora aqui em Santo André. Eu era também politicamente analfabeto. Nessa época de 1950, eu era politicamente analfabeto. A minha consciência política só vai se desenvolver a partir do momento do suicídio de Getúlio Vargas, em agosto de 1954, e depois com a instalação da ditadura militar, contra a qual eu assumi a minha posição contrária. Aí sim tive consciência política e a partir daí, acho que era extremamente individualista, porque eu estava muito ensimesmado devido aos meus problemas particulares de pobreza e miséria, mas em contato com os operários e os sindicatos, eu acabei desenvolvendo uma consciência política que eu passo aos meus alunos ainda hoje.
Pergunta:
Como foi esse relacionamento com o sindicato?
Resposta:
Você vai achar graça de como eu entrei. Eu era funcionário educador social do Sesi e como tal, além de dar cursos pelas empresas, nós deveríamos fazer, eu era membro, freqüentemente designado para as eleições sindicais, e fazia parte da mesa. Em 1950 e pouco fui designado com outros colegas a fazer parte da mesa apuradora das eleições do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André. Briga atrás de briga, discussões de facções, etc., um tormento. Nunca tinha entrado num torneio tão grande como aquele. A propósito disso, faça-me a gentileza, pergunte ao Filadelpho Brás, que virá aqui, que é a memória viva do sindicato na região e ele pode contar mais detalhes. Quando eu participei da mesa apuradora, eu queria apenas fazer lá o serviço em nome do Sesi e mais nada. Mas que nada! Quantas discussões, quantas brigas, quantas polêmicas entre facções diferentes. Uns conservadores, outros mais progressistas. Eu me perdi nisso. E à noite, terminada a votação, nós tínhamos de fazer a apuração. Nós varamos a madrugada. Aí alguém disse, e nós ingenuamente acabamos acatando, vamos fazer o relatório das eleições no dia seguinte. Nós deixamos tudo, todos os documentos arquivados no cofre do Sindicato dos Metalúrgicos. Quando nós chegamos na manhã seguinte, não é que todos os documentos das eleições, das votações, tinham sido roubados? Isso causou um problema de repercussão nacional. Eu estava no meio, sem saber o que fazer. Mas disso me ficou apenas uma imagem muito forte, a luta dos operários. Eu acho que isso foi muito importante. Quanta consciência de classe que eles têm, que não se via nos estudantes. Naquela época os operários tinham uma consciência política muito mais desenvolvida do que nós estudantes. E foi nesse momento que aconteceu o start para essa consciência coletiva, inicialmente sindical e depois política.
Pergunta:
Como o senhor pesquisou a ideal metodologia da divulgação das peças de teatro?
Resposta:
Essa é uma metodologia interessante. A peça, o grupo da cidade, tinha de ser montado, porque iam inaugurar o Teatro Municipal de Santo André. Nós precisávamos lotar aquele espaço. O que o GTC fez? Acabou contratando monitores que visitariam as escolas para fazerem a divulgação e fazerem uma sinopse da peça. O GTC vendia os espetáculos nas escolas. O esquema era esse, o GTC mandava os seus monitores às escolas para divulgar. Às igrejas e aos sindicatos também. Tanto que essa peça ficou umas boas semanas em cartaz. Outra coisa. Nesse período, de 1955/56, eu já tinha o Cursinho de Ciências e Letras, mais conhecido como cursinho do Takara, com 1500 alunos, eu me recordo que o GTC ia montar outra peça, não me lembro o nome, então eles me convidaram e também alguns outros nomes para pronunciarem palestras para preparar os alunos para assistirem à peça. Eles vinham até o auditório do teatro, ouviam as nossas preleções, então eles estavam preparados para assistirem à peça. Era essa a metodologia da divulgação. Agora, vocês me perguntam se o GTC era um grupo profissional? Não. Era um grupo que estava numa fase de semi profissionalização, tanto é verdade que dele vão surgir, eles, Petrin, Sônia Guedes, vão para o teatro profissional.
Pergunta:
O senhor sabe dizer por que houve a dissolução do grupo?
Resposta:
Acho melhor vocês perguntarem para o Zé Armando. É uma hipótese, mas naquele tempo o nosso Diretor de Cultura era o Muller. Ele foi um grande animador cultural. E não vamos esquecer que naquela época Santo André nadava em dinheiro, porque as indústrias estavam se instalando, sobretudo de autopeças em função das indústrias automobilísticas de São Bernardo do Campo e graças a isso então flui uma receita extremamente grande. Tudo que a comunidade pedia, inclusive o GTC, a Prefeitura atendia. E o Muller estava à frente do Departamento de Cultura, acabava atendendo. E naquele tempo havia uma consciência suburbana de Santo André e nós não queríamos ser tratados como suburbanos. Nós não admitíamos essa condição. O que nós conseguiríamos era viver a condição de uma região metropolitana. Por esse motivo o centro cultural era São Paulo e nós para lá nos dirigíamos. Então, nós queríamos montar aqui alguns espaços culturais, como Escasa, o Clube da Poesia, de Fotografia. Inclusive o Teatro de Alumínio e também o Teatro de Santo André. Houve uma emulação muito grande, havia dinheiro. E naquela época a idéia era teatro, teatro e teatro. Algumas outras exposições de artes plásticas também tinham, mas como a população era muito simples, de operários, eles também não faziam as demandas culturais. À medida que a cidade foi formando seus estudantes universitários e seus filhos foram ingressando no mercado de trabalho, então a população de Santo André sentiu a necessidade de estar mais próxima da vida cultural. As demandas começaram a se ampliar e se diversificar. Se na época de 70 foi até relativamente fácil fazer a gestão de cultura, hoje é difícil porque as demandas são muitas e os recursos são parcos. É o pessoal da periferia, da favela, que nos pede, que nos faz pedidos culturais. Vamos acabar com esse preconceito de que periferia são só pobres analfabetos e ladrões, e culturalmente despreparados. Muito pelo contrário. Eu, por causa desse movimento hip-hop que fiz a pesquisa junto à periferia, existe uma produção cultural extremamente rica na periferia e nas favelas, que nós da classe média desconhecemos, obscurecidos pelo nosso preconceito.
Pergunta:
Queria que o senhor deixasse uma mensagem sobre como o senhor vê a sua vida depois de todo esse envolvimento cultural que o senhor teve, com muita importância como agitador da região. Deixe alguma mensagem de como o senhor via e como o senhor vê agora.
Pergunta:
Queria sugerir aos jovens não abandonarem a luta, a despeito das condições precaríssimas, como a pobreza. Insistam na luta. E graças a essa persistência individual, ascender-se. Veja, eu era analfabeto, fui reprovado três vezes no grupo escolar e hoje sou professor universitário, pesquisador e também escritor. Não se deixem abater pelas dificuldades iniciais, persistam na luta. Mas não fiquem somente no plano individual. É preciso que além da consciência individual, eles tenham uma consciência coletiva também muito grande. E graças a essa consciência coletiva, desenvolver sentidos da justiça. A justiça é o mínimo. E nós precisamos desenvolver essa idéia da generosidade, colaborar com o outro que deseja alguma coisa que ele não tem, e colaborar para que ele conquiste. E ao mesmo tempo, dentro dessa perspectiva da consciência coletiva, ele desenvolver o sentido da solidariedade. Não sei se vocês conhecem a origem etimológica dessa palavra. Ela é linda, porque solidariedade vem do latim solidu. O que quer dizer isso? Que todos nós, à medida que nos unirmos, ficaremos sólidos e da palavra sólido que vem a palavra solidariedade. É bem no sentido da união fazer a força. E juntamente com solidariedade, outra palavra fundamental que é a palavra: companheiro. Qual a origem etimológica de companheiro? Também vem do latim companha. Companheiro quem é? É aquele que compartilha do mesmo pão. E no diálogo, na companhia do nosso amigo nós acabamos marchando juntos e atingindo objetivos e vamos desenvolvendo essa consciência cada vez maior e solidária. É essa a mensagem que gostaria de deixar para vocês.